sábado, 14 de julho de 2012

Carta do Zé da Roça (rec. por email e repassada para reflexão)

Carta do Zé da Roça – recebida por email, e repassada, pois vale a reflexão.

(A carta a seguir - tão somente adaptada por Barbosa Melo -,
foi escrita por Luciano Pizzatto que é engenheiro florestal,
especialista em direito sócio ambiental e empresário,
diretor de Parque Nacionais e Reservas do IBDF-IBAMA 88-89,
detentor do primeiro Prêmio Nacional de Ecologia).

“ Prezado Luis, quanto tempo. 

    Eu sou o Zé, teu colega de ginásio noturno, que chegava atrasado, porque o transporte escolar do sítio sempre atrasava, lembra né? O Zé do sapato sujo? Tinha professor e colega que nunca entenderam que eu tinha de andar a pé mais de meia légua para pegar o caminhão e que por isso o sapato sujava.      Se não lembrou ainda, eu te ajudo. Lembra do Zé Cochilo... hehehe, era eu. Quando eu descia do caminhão de volta pra casa, já era onze e meia da noite, e com a caminhada até em casa, quando eu ia dormi já era mais de meia-noite. De madrugada o pai precisava de ajuda pra tirar leite das vacas. Por isso eu só vivia com sono. Do Zé Cochilo você lembra, né Luis? 

    Pois é. Estou pensando em mudar para viver aí na cidade que nem vocês. Não que seja ruím o sítio, aqui é bom. Muito mato, passarinho, ar puro... Só que acho que estou estragando muito a tua vida e a de teus amigos aí da cidade. To vendo todo mundo falar que nós da agricultura familiar estamos destruindo o meio ambiente.      Veja só. O sítio de pai, que agora é meu (não te contei, ele morreu e tive que parar de estudar) fica só a uma hora de distância da cidade. Todos os matutos daqui já têm luz em casa, mas eu continuo sem ter porque não se pode fincar os postes por dentro de uma tal de APPA que criaram aqui na vizinhança.      Minha água é de um poço que meu avô cavou há muitos anos, uma maravilha, mas um homem do governo veio aqui e falou que tenho que fazer uma outorga da água e pagar uma taxa de uso, porque a água vai se acabar. Se ele falou, deve ser verdade, né Luís?

    Pra ajudar com as vacas de leite (o pai se foi, né ), contratei Juca, filho de um vizinho muito pobre aqui do lado. Carteira assinada, salário mínimo, tudo direitinho como o contador mandou. Ele morava aqui com nós num quarto dos fundos de casa. Comia com a gente, que nem da família. Mas vieram umas pessoas aqui, do sindicato e da Delegacia do Trabalho, elas falaram que se o Juca fosse tirar leite das vacas às 5 horas tinha que receber hora extra noturna, e que não podia trabalhar nem sábado nem domingo, mas as vacas daqui não sabem os dias da semana, aí não param de fazer leite. Ô, os bichos aí da cidade sabem se guiar pelo calendário?

    Essas pessoas ainda foram ver o quarto de Juca e disseram que o beliche tava 2 cm menor do que devia. Nossa! Eu não sei como encompridar uma cama, só comprando outra, né Luis? O candeeiro eles disseram que não podia acender no quarto, que tem que ser luz elétrica, que eu tenho que ter um gerador pra ter luz boa no quarto do Juca.     Disseram ainda que a comida que a gente fazia e comia juntos tinha que fazer parte do salário dele. Bom Luís, tive que pedir ao Juca pra voltar pra casa, desempregado, mas muito bem protegido pelos sindicatos, pelos fiscais e pelas leis. Mas eu acho que não deu muito certo. Semana passada me disseram que ele foi preso na cidade porque botou um chocolate no bolso no supermercado. Levaram ele pra delegacia, bateram nele e não apareceu nem sindicato nem fiscal do trabalho para acudi-lo.    Depois que o Juca saiu, eu e Marina (lembra dela, né? Casei) tiramos o leite às 5 e meia, aí eu levo o leite de carroça até a beira da estrada, onde o carro da cooperativa pega todo dia, isso se não chover. Se chover, perco o leite e dou aos porcos, ou melhor, eu dava, hoje eu jogo fora.    Os porcos eu não tenho mais, pois veio outro homem e disse que a distância do chiqueiro para o riacho não podia ser só 20 metros. Disse que eu tinha que derrubar tudo e só fazer chiqueiro depois dos 30 metros de distância do rio, e ainda tinha que fazer umas coisas pra proteger o rio, um tal de digestor. Achei que ele tava certo e disse que ia fazer, mas só que eu sozinho ia demorar uns trinta dia pra fazer, mesmo assim ele ainda me multou, e pra poder pagar eu tive que vender os porcos, as madeiras e as telhas do chiqueiro, fiquei só com as vacas. O promotor disse que desta vez, por esse crime, ele não vai mandar me prender, mas me obrigou a dar 6 cestas básicas pro orfanato da cidade. Ô Luís, aí quando vocês sujam o rio também pagam multa grande, né?     Agora pela água do meu poço eu até posso pagar, mas tô preocupado com a água do rio. Aqui agora o rio todo deve ser como o rio da capital, todo protegido, com mata ciliar dos dois lados. As vacas agora não podem chegar no rio pra não sujar, nem fazer erosão. Tudo vai ficar limpinho como os rios aí da cidade. A pocilga já acabou, as vacas não podem chegar perto. Só que alguma coisa tá errada, quando vou na capital nem vejo mata ciliar, nem rio limpo. Só vejo água fedida e lixo boiando pra todo lado.    Mas não é o povo da cidade que suja o rio, né Luís? Quem será? Aqui no mato agora quem sujar tem multa grande, e dá até prisão. Cortar árvore então, Nossa Senhora! Tinha uma árvore grande ao lado de casa que murchou e tava morrendo, então resolvi derrubá-la para aproveitar a madeira antes dela cair por cima da casa.   
Fui no escritório daqui pedir autorização, como não tinha ninguém, fui no Ibama da capital, preenchi uns papéis e voltei para esperar o fiscal vir fazer um laudo, para ver se depois podia autorizar. Passaram 8 meses e ninguém apareceu pra fazer o tal laudo, aí eu vi que o pau ia cair em cima da casa e derrubei. Pronto! No outro dia chegou o fiscal e me multou. Já recebi uma intimação do Promotor porque virei criminoso reincidente. Primeiro foram os porcos, e agora foi o pau. Acho que desta vez vou ficar preso.    Tô preocupado, Luís, pois no rádio deu que a nova lei vai dá multa de 500 a 20 mil reais por hectare e por dia. Calculei que se eu for multado eu perco o sítio numa semana. Então é melhor vender e ir morar onde todo mundo cuida da ecologia. Vou para a cidade, aí tem luz, carro, comida, rio limpo. Olha, não quero fazer nada errado, só falei dessas coisas porque tenho certeza que a lei é pra todos.    Eu vou morar aí com vocês, Luís.
 Mas fique tranquilo, vou usar o dinheiro da venda do sítio primeiro pra comprar essa tal de geladeira. Aqui no sitio eu tenho que pegar tudo na roça. Primeiro a gente planta, cultiva, limpa e só depois colhe pra levar pra casa. Aí é bom que vocês é só abrir a geladeira que tem tudo. Nem dá trabalho, nem plantar, nem cuidar de galinha, nem porco, nem vaca, é só abrir a geladeira que a comida tá lá, prontinha, fresquinha, sem precisá de nós, os criminosos aqui da roça.     Até mais Luis.    
Ah, desculpe, Luís, não pude mandar a carta com papel reciclado, pois não existe por aqui, mas me aguarde até eu vender o sítio. 

(Todos os fatos e situações de multas e exigências são baseados em dados verdadeiros. A sátira não visa atenuar responsabilidades, mas alertar o quanto o tratamento ambiental é desigual e discricionário entre o meio rural e o meio urbano.)

DELINEAMENTOS DA FUNÇÃO DO CONSULTOR AMBIENTAL


DELINEAMENTOS DA FUNÇÃO DO CONSULTOR AMBIENTAL
 A presente postagem  visa, ainda que de maneira superficial, esclarecer alguns equívocos sobre a figura do Consultor Ambiental, ao mesmo tempo em que valoriza seu importante trabalho.

Duas ou três “palavras sobre a palavra” consultor. Nos idos dos anos setenta, a figura do ‘consultor’, aplicada ao campo profissional, engenharias e outros, gozava de um status elevado. Algo quase pós- sênior. Consultor era aquele profissional chamado para atender a demandas específicas de alta especialidade, e expertise, que o corpo técnico médio não era capaz de solucionar. Posteriormente, em função se uma série de fatores a palavra popularizou-se. Talvez por vergonha ou forma de valorização do profissional de vendas, este também ganhou a alcunha de ‘consultor comercial’, ou ‘consultor de vendas’, quando nada mais é que um vendedor — sem qualquer demérito no fato. Não é raro vermos em cartões de visita de lojas, Fulano de Tal, Consultor Comercial. Já o Consultor Ambiental aqui tratado é uma figura juridicamente distinta de ambos, podendo se aproximar da primeira acepção a depender de sua atuação.

A palavra chave que define e o Consultor Ambiental é independência, técnica e profissional, em relação ao seu contratante. A Res. CONAMA 237  prevê tal independência como obrigatória, sob pena de responsabilização técnica-profissional por dados falsos ou mesmo omitidos. A Resolução anterior, revogada nesse aspecto ia além, e proibia, como forma de assegurar ao máximo essa independência e livrar o consultor de qualquer pressão, que o consultor pertencesse aos quadros trabalhistas do empreendedor. Tal exigência não mais subsiste, porém a Resolução deixa clara a obrigação da independência, imparcialidade e, por conseguinte, dever de lealdade com os estudos realizados ( de se lembrar que éticas até quando dos juramentos quando da diplomação e obtenção grau).

Não é um encaixe perfeito, por razões que se verá a breve trecho, mas uma figura assemelhada ao Consultor Ambiental, e quem pode servir para compreensão do trabalho do mesmo é a do perito judicial. Ora, o perito judicial, presta compromisso, e não é parcial (no sentido de favorecer ou trabalhar em prol de qualquer parte), é antes um ‘expert’ que cumpre função auxiliar ao Juiz, realizando perícia, esclarecendo fatos, pouco importando as consequências para causa se favorecerá ou não A ou B. O que caracteriza o trabalho do perito judicial na compreensão de qualquer pessoa é a sua imparcialidade e a sua especialidade no assunto tratado.

Sob tal aspecto a comparação é perfeita. O Consultor Ambiental também detém especialidade e é imparcial, ainda que contratado pelo empreendedor (primeira diferença). Outro aspecto é que o Perito, o mais das vezes, cinge-se a responder o que lhe foi perguntado, apresentando um laudo pericial capaz de dar ao Juiz melhores condições ao julgamento da causa, sempre em busca da verdade real. Quanto aos quesitos apresentados, o Perito judicial as responde de maneira objetiva, cingindo-se ao que lhe foi perguntado. O Consultor Ambiental, além de diagnosticar e elucidar os fatos do empreendimento em análise pode — e deve— propor soluções, alternativas que apresentem p.e. maior eficácia do ponto de vista de custos, sustentabilidade, conservação ambiental, e que possam ter passado desapercebidas. É a segunda diferença.

Na quase totalidade das vezes os estudos ambientais são realizados por equipes formadas por profissionais de diversas especialidades (para atender as três esferas de conhecimento que compõe o ambiente- física, biótica e antrópica), que se integram a fim de produzir o estudo ambiental. É,  portanto um equipe multidisciplinar, ao mínimo. Desejavelmente tais equipes deveriam ser transdisciplinares, no sentido do maior diálogo possível entre as especialidades diversas, visto  a questão ambiental apresentada ser única. E melhores serão as soluções quanto maior for o diálogo entre os profissionais envolvidos.  Não considero um bom estudo ambiental aquele onde “cada um faz sua parte” e ao final apenas juntam-se os capítulos. Provavelmente ter-se á um estudo ambiental descritivo, e com imensas dificuldades ao Coordenador do estudo em organizar a conclusão. É preciso lembrar que o documento final deve ser uno, e deverá guardar harmonia, tanto em termos de diagnósticos, níveis indicados de aprofundamento , metodologias, justificativas para as conclusões e propostas. Isso diz respeito diretamente a uma questão interna às Consultoras Ambientais, em termos de organização e métodos, onde a maior integração possível é fundamental à qualidade do trabalho.

Outro aspecto por vezes negligenciado é que independente da formação e habilitação técnica do Consultor Ambiental, quando ele atua nesta qualidade deve guardar estrita observância com as exigências antes expostas (imparcialidade, independência, lealdade à técnica, enfim uma ética própria ao Consultor Ambiental). Portanto, em qualquer profissão, entendo que um profissional que atuou como Consultor Ambiental em dado empreendimento está eticamente impedido de atuar no mesmo empreendimento como profissional independente. O que pode representar um problema, considerando que a Res CONAMA não mais exige a figura do Consultor externo. No caso do profissional da área jurídica, ao atuar como Consultor Ambiental, este poderá (p.e.) redigir o capítulo das normas legais. Elencando as normas que deverão ser observadas, identificando passivos, alertando para possíveis problemas que aquele caso concreto poderá vir a ter, dando seu parecer sobre eventuais conflitos de leis, etc. Mas é como se atuasse como bacharel em direito. Por hábito assina-se colocando o nº da OAB (como o fazem os demais profissionais, ao apor os números de seus registros nos respectivos conselhos profissionais). Porém, ao surgir um litígio, entendo que o advogado que atuou como Consultor Ambiental naquele mesmo empreendimento está eticamente impedido de advogar a favor do empreendedor. Pela bastante razão que o Consultor tem o dever da imparcialidade, ao passo que o advogado tem, por definição o dever de parcialidade (no sento etimológico de lealdade à parte que representa). Assim, se ao advogado é lícito argumentar o que lhe é favorável na demanda, não o pode fazer o Consultor, que tem por obrigação o dever de analisar o todo, com os pros e contras, não sendo permitido ao Consultor omitir-se sobre determinado dado que tem ou deveria ter conhecimento. Sequer é preciso buscar (no caso da advocacia)subsídios no Estatuto da Ordem. O bom senso já é suficiente para indicar a obviedade de tal afirmação. É dizer: se o advogado tem interesse em advogar para o empreendedor (porque os honorários são melhores que os pagos ao Consultor ou por qualquer outra razão), que não atue como Consultor Ambiental. O mesmo raciocínio é válido in totum, a qualquer profissional.

O Consultor pode ser chamado a elucidar determinada questão, seja por solicitação do Órgão Ambiental que concederá a licença, seja pelo empreendedor. Poderá ainda ao esclarecer propor soluções (que em regra já deveriam estar contidas no trabalho), mas não poderá, como profissional autônomo, atuar naquele empreendimento, como se representasse dois papéis, uma hora como Consultor, outra como profissional, advogando, ou o que seja. É dizer: o papel do Consultor cinge-se à consultoria prestada, aos estudos ambientais produzidos.  

E se bons os estudos ambientais, mais a figura do Consultor Ambiental se aproximará da primeira acepção do termo. É quando não apenas produz um volume, um estudo ambiental, mas indo além da simples tarefa de “obter a licença”, propõe soluções, demonstra  alternativas desapercebidas, propõe soluções inovadoras, i.e, cria, praticando de fato a boa engenharia, um nível de qualidade superior. ‘Boa engenharia esta’, que infelizmente se vê cada vez mais distante, soterrada por fatores como facilidades da informática (que ao permitir velocidade reduz o pensar); a ‘urgência’ dos empreendedores;  a falta de conato entre os profissionais de meio ambiente com os profissionais dos demais setores produtivos, onde projetos de engenharia e ambiental são vistos e operacionalizados como coisas distintas entre si;  a mecanicidade de alguns Órgãos Licenciadores, dentre outros.